Entrevista: Flávio Gikovate
Eu sem você não tenho porquê, porque sem você não sei nem chorar. Sou chama sem luz, jardim sem luar (...) Tristeza que vai, tristeza que vem. Sem você, meu amor, eu não sou ninguém Os versos da canção Samba em Prelúdio, de Baden Powell e Vinícius de Moraes retratam o amor dos sonhos de todos que buscam por um final feliz, certo?
Errado! Para o Psicanalista Flávio Gikovate, em seu 26º livro Uma História de Amor... Com Final Feliz, o ideal de amor romântico que predomina no imaginário coletivo está com os dias contados. Baseado nas experiências de seus 40 anos de atuação na psicoterapia e em suas vivências pessoais, Gikovate apresenta uma proposta inusitada acerca da questão do amor: formar laços que respeitem a individualidade; ou viver só, estabelecendo vínculos afetivos e eróticos mais superficiais.
Médico psiquiatra formado pela USP, apresentador do programa No Divã do Gikovate, da Rádio CBN, e autor de diversos livros sobre a sexualidade humana e o tema do amor, Flávio Gikovate conversou com o Guia da Semana e aconselha que o famoso ficar pode ser um interessante método para atingir a maturidade nos relacionamentos.
Guia da Semana: No livro Uma História de Amor... Com Final Feliz, você diz que o amor como vivenciamos hoje é imaturo e regressivo e propõe que os relacionamentos sejam mantidos pelo +amor . Como você define este sentimento?
Flávio Gikovate: O +amor traz uma relação compatível com os tempos modernos, que respeita a individualidade. Existe respeito, alegria e prazer de estar junto, e não mais uma relação de dependência, em que um responsabiliza o outro pelo seu bem-estar. É parecido com a amizade porque aproxima duas unidades e não duas metades . Basicamente, é uma forma adulta e sólida de relacionamento, na qual a palavra concessão é substituída por respeito.
GDS: Muitos relacionamentos acabam porque o parceiro estava se sentindo sufocado pelo outro. Como você explica este comportamento?
FG: Esse comportamento nada mais é do que medo de se relacionar. Parte desse medo é o de perder a individualidade. Então, o indivíduo foge. Se não foge, chega uma hora em que começa a se sufocar pela falta da individualidade de novo. Mas com o tempo o medo vai diminuindo junto com a vontade de ficar grudado e vai aumentando a individualidade. É como se o amor bem resolvido curasse o indivíduo do mal de amar.
GDS: Neste contexto, como fica o ideal de fusão de um relacionamento?
FG: Primeiro, é importante lembrar que o sonho de fusão continua presente. Mas duas coisas modificaram esse ideal do amor: a independência da mulher, desequilibrando a idéia de fusão com uma liderança masculina, e o avanço tecnológico, que criou condições extraordinárias para o entretenimento individual. Hoje, há uma briga muito mais ostensiva entre amor e individualidade. Nesse sentido, acho que o +amor tem grande chance de prevalecer.
GDS: E o ficar , onde se enquadra?
FG: As relações amorosas sempre vão existir. O que eu defendo, e acredito, é que elas vão mudar. Porque o mundo mudou e está impondo a necessidade de levar em conta a individualidade. As relações casuais também vão continuar acontecendo. E, nessa nova ordem, ela nem sempre será considerada ruim. Se houver maturidade de ambas as partes, restará sempre uma boa relação afetiva, ainda que superficial. O status do ficar , criado pelos jovens, é uma condição de relacionamento simplesmente perfeita. É um bom ensaio para atingir a maturidade.
GDS: As mulheres sentem mais dificuldade em lidar com a solidão?
FG: Depende. A mulher que consegue trabalhar a sua individualidade consegue viver bem sozinha. Elas são as que mais caminham no processo de individuação, pois são vítimas dos relacionamentos de fusão romântica . As maiores renúncias são exigidas das mulheres. Hoje, as relações são mais cooperativas e ambos, por meio de negociações, decidem o que será feito em conjunto.
GDS: O que é preciso para viver uma relação amorosa mais individualizada?
FG: Temos que ser observadores imparciais e tirarmos vantagens das coisas em vez de ficar lamentando. A vantagem é: avanço moral, avanço da capacidade dos seres humanos de ficarem sozinhos e aprendizado para resolver essa situação de incompletude. Essa é uma novidade que mata a idéia do amor no seu sentido tradicional, como remédio para a incompletude. O amor como remédio tem que desaparecer porque é um mau remédio.
Foto: Divulgação
GDS: Como a mulher deve lidar com a pressão que a sociedade impõe a favor do casamento?
FG: Atualmente, há muitos solteiros felizes. E a pressão em relação ao casamento reduziu muito nos últimos anos. A maioria das pessoas leva uma vida serena e sem conflitos. Quando sentem uma sensação de desamparo, aquele vazio no estômago por estarem sozinhas, resolvem a questão sem ajuda. Mantêm-se ocupadas, cultivam bons amigos, lêem um bom livro, vão ao cinema. Com um pouco de paciência e treino, driblam a solidão e se dedicam às tarefas que mais gostam. Os solteiros que não estão bem são, geralmente, os que ainda sonham com um amor romântico. Ainda possuem a idéia de que uma pessoa precisa de outra para se completar. Pensam, como Vinícius de Moraes, que é impossível ser feliz sozinho . Mas isso já caducou! Então, acabam vivendo tristes e deprimidos.
GDS: E quanto ao sexo, para um casal se dar bem na cama é preciso separar sexo e amor?
FG: O sexo é uma área em que ainda precisamos avançar. Em nossa cultura, o sexo vai melhor quando há briga. As pessoas gostam mais de transar com inimigos do que com amigos. Isso mostra como precisamos avançar no entendimento da questão sexual. Ainda é preciso inventar um erotismo que não seja comprometido com vulgaridade e violência. Para superar isso, é preciso ser criativo e entender que as leis da atração sexual não são as mesmas das relações afetivas de boa qualidade. Na hora do sexo, talvez seja necessário mudar o canal, no qual o outro tem de deixar de ser o parceiro sentimental para ser um outro parceiro. É assim que os casais que se amam de verdade descobrem estratégias para que o sexo flua.
GDS: A mulher moderna concilia diversas tarefas: ser mãe, profissional, dona de casa e amante. Essa multiplicidade feminina pode prejudicar o relacionamento?
FG: As mulheres ainda pensam como suas mães. Embora elas sejam maioria nas universidades, elas ainda imaginam o casamento como estabilidade sentimental e material. Isso mostra que, apesar da multiplicidade de papéis, a mulher ainda relaciona amor e casamento. Amor é um assunto e casamento é outro. Nos relacionamentos baseados no que chamo de +amor , os maridos não serão mais protetores ou provedores. Eles terão de ser encarados como companheiros, parceiros de viagem. Mas isso só é possível para aqueles que conseguem trabalhar a sua individualidade.
Colaborou:
• Flávio Gikovate
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